Saber sentir
Postado por Ney Jefferson em A felicidade e o sentido da vida, Outras categorias, Sinto, logo existo segunda-feira, 2 novembro 2015 13:11 Nenhum comentário
Começou uma nova série na televisão muito interessante, nela homens interagem com robôs feitos de forma a reproduzir a forma humana e que ajudam as pessoas em várias de suas tarefas mais chatas e rotineiras. Mas o que começou como uma série de ficção científica de repente pode provocar várias reflexões e debates sobre a nossa própria condição humana, daí talvez seu nome: Humans. A grande questão filosófica, que dá o tom da série, é que a partir de um determinado momento algumas dessas máquinas começam a desenvolver aquilo que chamamos de consciência, que na realidade ninguém sabe explicar o que é nem o que vem a ser, mas que transforma aquelas máquinas em seres que não aceitam mais o mando nem a escravidão, e isto é visto como um defeito incontornável pelos seus construtores.
A personagem principal, uma sintética (como são chamados na série) é Mia, uma moça de traços chineses e que interage com uma família americana comum de classe média, onde a mãe a encara como uma possível concorrente, até por perceber que ela não é uma máquina comum. Observando as atitudes de Mia em determinado momento, a mãe percebe um forte apego dela aos dois filhos menores da família, e a questiona se talvez gostaria de saber amar, coisa que Mia parece completamente alheia, e essa pergunta fica no ar como uma impossibilidade, com jeito de que vai ser ser respondida mais à frente. Além disso essas máquinas, os sintéticos, que parecem ter consciência, demonstram também sentir algumas emocões humanas como a angústia, a compaixão, o medo e o ódio, além da capacidade de apreciar certas sutilezas da vida, enfim, todas essas coisas que nos fazem tão humanos, belos e complexos, mas ao mesmo tempo em nos diferenciam podem nos fazer sofrer.
Ironicamente a série faz uma paródia com a história bíblica do Gênesis, onde Deus, ao criar o homem, o fez à sua imagem e semelhança, mas com alguns “probleminhas”, que deram origem a todo tipo de debate filosófico, que são colocados, intencionalmente ou não, pelas personagens da série, como por exemplo a de que “ter consciência é sentir dor” e de que sem esta, talvez a própria consciência fosse impossível. Isto me fez tentar aprofundar um pouco minhas reflexões neste post sobre o sentir, e suas consequências, boas e ruins para o ser humano.
Nossa consciência, ao ser exposta ao que chamamos de emoções, desenvolveu uma característica evolucional única, que são nossos sentimentos, profundas alterações em nossa própria forma de perceber o mundo, não apenas pelas sensações como na maioria das espécies, mas por uma série de interrelações entre consciência, instintos e aquelas próprias, assim se tornaram complexas e de um nível não atingido ainda por seres menos evoluídos em nosso planeta. Embora tenhamos níveis diferentes de amadurecimento destas características entre nossa própria espécie é perfeitamente observável um padrão de funcionamento semelhante entre nós, dentro de certos limites. Muitos, por exemplo tem uma forma de entender o mundo mais racional e com menos percepção às peculiaridades do mundo e das pessoas; outros são mais emocionais e empáticos, sentido-se mais integrados ao mundo e aos seres que o habitam. Mas entre sentir ódio, amor, empatia ou raiva, medo e outros sentimentos menos integrativos existem grandes variações, e pelo menos duas das personagens da série se mostram tão desconfortáveis neste papel que uma quer se matar e a outra quer matar os outros, principalmente para evitar novas dores. Nada muito diferente dos seres humanos que conhecemos, afinal existe uma classe de seres humanos incapazes de sentir a emoção como estamos acostumados a concebe-la: os psicopatas, que muitas vezes não conseguem nem sentir emoção nenhuma, no máximo o ódio e a raiva.
Sentir dor afinal é um dos grandes móveis da humanidade como um todo, e de nós como indivíduos, em nossa eterna busca de uma vida mais satisfatória e “feliz”, o que para muitos é exatamente uma vida sem dores, físicas, emocionais ou mentais. Nesta busca por anular a dor e viver com mais prazer nós com frequência nos equivocamos e somos capazes de atos que podem levar à dor e dano de outros seres vivos, e ameaçam até a integridade do planeta. Por desejar se proteger da dor muitos desenvolvem uma personalidade agressiva ou tímida em excesso, se fecham num mundo à parte por medo ou ainda tentam se distanciar de toda e qualquer expressão emocional e de relacionamento com seus pares, tornando seus relacionamentos superficiais e áridos, sem afeto. Por isso sentimentos como o amor, difícil de ser explicado, pode e deve ser desenvolvido. Pela minha experiência já descobri que o desenvolvimento das emoções é contínuo, e permanece durante toda a vida do indivíduo, desde que este o permita. Assim é possível que se desenvolva amor onde muitas vezes só existe a incompreensão e a falta de sensibilidade, bem como outras emoções positivas, mais complexas que as “negativas”, como o ciúme, a raiva e a vingança. Para isso o convívio social, a família e as relações amorosas como um todo são essenciais.
Os homens também muitas vezes agem de forma absolutamente egoísta, ferindo e matando outros seres, e os próprios seres humanos, por propósitos que não se revertem em bem ao mundo ou à sua própria espécie. Na série os sintéticos demonstram o que se chama de altruísmo, qualidade que também é incomum à raça humana, assim como a maioria das virtudes. Assim a série vai colocando em planos opostos humanos e androides, como se estes não tivessem o direito de serem chamados seres vivos e conscientes apenas por serem construídos de um material diferente de nós mesmos, ou por apresentarem “defeitos”, como poder matar e ferir outros seres. Mas se nos questionarmos sobre o que nos faz humanos notamos que são mais nossos defeitos que nossas qualidades, e se isto fosse impeditivo para nossa existência alguém teria o direito de nos exterminar, pois já fizemos, e continuamos fazendo, barbaridades ao nosso mundo e à nossos semelhantes, coisa que inclusive os sintéticos são incapazes de fazer. Repetindo das coisas mais bonitas ditas por uma dos sintéticos: “A humanidade não é um estado, é uma qualidade, e um de nós tem mais humanidade do que muitos de vocês”.

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